sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

GANHEI CORAGEM


“Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece“, observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Albert Camus, ledor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora quando a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos“. Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre que me calei: “O povo unido jamais será vencido“. É disso que eu tenho medo.

Em tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o “povo“ tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo... Não sei se foi bom negócio: o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de televisão que o povo prefere.

A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse, na montanha, para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os 10 mandamentos.

E há a estória do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou... Passado muito tempo Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos... E que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será minha para sempre...“ Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta. Mas sabia que ela não era confiável.

O povo sempre preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhes contavam mentiras. As mentiras são doces. A verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos o circo era os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos.

Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro “O homem moral e a sociedade imoral” observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis“ por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo, tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo.

Meu amigo Lisâneas Maciel, no meio de uma campanha eleitoral, me dizia que estava difícil porque o outro candidato a deputado comprava os votos do povo por franguinhos da Sadia. E a democracia se faz com os votos do povo... Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói o ideal da democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições – e a democracia - são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é o ideal democrático, que eu amo. Outra coisa são as práticas de engano pelas quais o povo é seduzido. O povo é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus Cristo foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a Revolução Cultural na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer. O mais famoso dos automóveis foi criado pelo governo alemão para o povo: o Volkswagen. Volk, em alemão, quer dizer “povo“...

O povo unido jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos... Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio; não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol (tive a desgraça de viajar por duas vezes, de avião, com um time de futebol...). Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e engolir sapos e a brincar de “boca-de-forno“, à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhando e cantando e seguindo a canção...“ Isso é tarefa para os artistas e educadores: O povo que amo não é uma realidade. É uma esperança.


Ruben Alves


sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

PEREGRINAÇÃO (2011)


Um peregrino é um andarilho com um objetivo.”

Há manhãs em que acordamos com a visão ainda embaçada, ao som do alarme do relógio, e nos esforçamos para encontrar alguma motivação para enfrentar o dia que começa. Afastamos as cortinas para nos depararmos com a mesma cena cotidiana e ansiamos pelo dia em que poderemos sair pela porta e encontrar algo diferente. Nossas vidas diárias podem perecer previsíveis e insatisfatórias e, então, algo dentro de nós nos instiga a ir rumo a novos horizontes, na direção daquela curva, no caminho que os levará a montanhas desconhecidas.

Essa inquietação e esse descontentamento podem significar o início de algo notável. Ao invés de simplesmente desconsiderar esse sentimento, dando de ombros com desdém, poderíamos dar ouvidos ao que o nosso espírito está dizendo. Podemos estar ansiando por um tipo de vida diferente e não apenas por uma simples mudança. Podemos estar famintos de significado, de compreensão, de esperança e também de aventura.

Nosso espírito pode estar ansiando por peregrinação ̶ uma jornada rumo ao desconhecido ̶ mas, ainda assim, uma jornada com um destino.

Nossa vida pode ser uma peregrinação, uma jornada de descoberta espiritual. Mas também há ocasiões em que precisamos viajar com nossos próprios pés, andar pelo mundo deliberadamente, com a intenção de nos permitirmos estar abertos, animados pela esperança, guiados pelo amor.

Andrea Skevington

Que a nossa jornada no próximo ano seja plena de paz, mas repleta de aventura; que estejamos ávidos pelo que Deus quer nos mostrar... FELIZ 2011!

Disse Pedro: quem é que nos guiará pelo caminho além de ti? Só tu tens as palavras que nos fazem experimentar a vida eterna. E nós temos conhecido essa verdade e cremos que tu foste enviado por Deus para nós.” João 6.68s

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

NATAL GAÚCHO

Hoje, mais do que nunca, o Natal tem se confundido com a figura do Papai Noel e com o mercado de presentes. É comum entrar em casas e estabelecimentos comerciais na época natalina e não encontrar sinal do menino Jesus.

Crescemos, na verdade, com a idéia de que Natal é a época de ganhar presentes, dar presentes e, talvez, época de reunir nossos familiares para confraternização, refeições, "amigo secreto"... Embora seja fomentada a “paz entre os homens de boa vontade”, esquece-se do Autor da paz, daquele que veio ao mundo para revelar Deus e mostrar que é possível viver a verdadeira paz, a partir do relacionamento com Ele. Natal é nascimento; o nascimento do Cristo que nos convida a (re)nascer com ele, a cada dia, para desfrutarmos a vida eterna aqui e agora. Não é justo dar todo mérito ao Papai Noel, não é mesmo?

O Rio Grande do Sul, nesse sentido, tem uma história e um folclore que proporcionam retomar o Natal em sua idéia original. Conforme o tradicionalista João Carlos Paixão Côrtes, autor de mais de 40 obras publicadas sobre a cultura gauchesca, a figura do velhinho surgiu no Rio Grande do Sul após a 1ª Guerra Mundial, baseada em um santo (São Clauss para os nórdicos europeus) da Igreja Católica. Foi criado pelo desenhista Tomas Nast, que se inspirou em um poema de seu compatriota norte-americano Clemente Clark Moore. Além disso, segundo Paixão Côrtes, a indústria comercializa e profaniza essa figura: Nast deu-lhe forma, traços e cores, restaurou a cor vermelha da roupa do velho bispo Nicolau e acrescentou uma capa também rubra; o caricaturista inventou um gorro vermelho e, mais tarde, a roupagem de inverno foi simplificada para um gibão, uma espécie de calça abombachada.

Assim, de acordo com o tradicionalista, precisamos valorizar o Natal tipicamente gauchesco, abandonando pinheiros europeus, trenós e roupas de lã. O verdadeiro Natal Gaúcho é uma festa da família, onde se comemora o nascimento de Cristo diante de um presépio, representativamente, com a presença do menino Jesus na manjedoura entre ovelhas, burricos e vacas, além de cânticos e orações fundamentados em mensagens de um cristianismo puro e singelo.

O Natal gaúcho, então, ou simplesmente o Natal, tem mais a ver com simplicidade e desapego (representados pelas próprias condições do nascimento de Jesus); a doação de presentes com o suprimento de necessidades, com dar a quem precisa (a vida de Jesus espelha isso); e os cânticos e orações devem nos levar a um espírito de gratidão por Deus ter nascido como ser humano para reconectar a humanidade com o seu amor.

Vamos, portanto, fazer desse Natal uma celebração do nascimento de Cristo e uma oportunidade de ouvir sua mensagem para todos os povos.

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Relato de Paixão Côrtes (extraído do livro O Natal Gaúcho e os Santos Reses. J. C. PAIXÃO CÔRTES. IGTF, 1982).

“Sempre que se aproxima o fim do ano, vejo entristecido que a querência vai se deixando envolver, mais pelas fantasias das luzes da cidade, pela ambição de um certo comércio, sedento de grandes lucros. Refiro-me ao PAPAI NOEL e ao NATAL.
Desde meus tempos de piá, cruzando a linha divisória que une Santana do Livramento à Rivera (Uruguai) e, anos mais tarde, quando em pesquisa sobre música folclórica, visitei o Paraguai, Argentina e Bolívia, verifiquei ainda a diferença das comemorações do Ciclo Natalino desses países com o nosso.

Aliás, da América Latina, é, mais freqüente no Brasil, que apareça a figura, misto de ‘Lucifer-santo’, atemorizando as crianças travessas e faltosas, prometendo-lhes varas de marmelo e, quase ao mesmo tempo, com um saco de brinquedos às costas, estende a mão aos guris comportados, oferecendo-lhes ‘bondosamente’ presentes.
Na maioria dos demais países sul-americanos, não encontramos Papai Noel distribuindo presentes no Natal, como acontece em nosso país.

A verdadeira tradição natalina rio-grandense é aquela em que se comemora o dia do nascimento de Cristo, diante de um presépio, com Menino Jesus na manjedoura, com burrico, vaquinha, ovelha, cânticos, anunciando a chegada dos Reis Magos...
Este é o verdadeiro NATAL GAÚCHO. Festa da família. Dia de Navidad, como denominam os países de língua espanhola na América do Sul.

Qual a razão do renascimento do culto de uma árvore, tão difundido entre os povos mais primitivos? De onde é, este tipo de pinheiro, estranho ao nosso, que se desenvolve em determinadas regiões do Brasil? Imaginem só! No mais forte do verão, aqui, um Papai Noel vestido com grossas roupas de lã, capuz, todo respingado de neve, descendo, de botas, de uma chaminé ou sentado em um trenó, puxado por gamos...
Velinhas e bolinhas coloridas completam os enfeites das mesas onde são servidas nozes, tâmaras, torrones, chocolates, ameixas secas, passa, etc, alimentos de alto teor calorífico, próprios para o inverno, em pleno clima europeu... Tudo isso num país tropical como o Brasil!!!

Portanto, tentemos encontrar, na história universal das festividades natalinas, algumas explicações para o surgimento de certos acontecimentos, hoje vividos em muitos rincões do mundo.”

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O lar... do jeito de Deus



Lar doce lar. O que é um lar? É o nosso refúgio, nosso abrigo no temporal, nosso porto seguro. É um oásis onde matamos nossa sede, renovamos as energias, partilhamos juntos o pão de cada dia, nos sentimos amados, acolhidos, aceitos e protegidos. É um lugar de perdão; perdoamos e somos perdoados. Nossas feridas são tratadas e saradas, abraçamos e somos abraçados, beijamos e também somos beijados.

Lar é um lugar onde a doação acontece em pequenos gestos, queremos mais compreender do que ser compreendidos, onde o dar vem antes do receber. É o jardim onde a beleza e o perfume das flores exalam em palavras e atitudes. [É o templo onde orações são entregues a Deus e onde Deus responde como aquele que faz parte e sustenta a família].

Lar é a lareira sempre acesa, onde pais e filhos são aquecidos nos dias gélidos, quando chega o inverno. O respeito, a fidelidade, a estima, a consideração e o temor a Deus são virtudes vividas na prática. Quando um membro sofre, todos sofrem com ele; quando um se alegra, todos são contagiados por ele. Onde ninguém tem em vista o que é propriamente seu, mas, sim, o que é do outro. Onde não digo eu, mas digo nós. Podemos até pensar diferente, ver as coisas em ângulos diferentes, mas nada é capaz de nos separar. É onde o cordão de três dobras não se quebra, as muitas águas não apagam o amor, e nem os rios o afogam.

Lar é o lugar onde a palavra que mais se pronuncia e é mais ouvida é... AMOR. Sim, o amor que é paciente, bondoso. O amor que não inveja, não se vangloria, não se orgulha. O amor que não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor que não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. O amor que tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Esse tipo de amor jamais acaba...

Que Deus abençoe o nosso lar. Que ele seja do jeito de Deus.

Messias A. Rosa (adaptado)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sobre Deus...

Alguém disse que gosta das coisas que escrevo, mas não gosta do que penso sobre Deus. Não se aflijam. Nossos pensamentos sobre Deus não fazem a menor diferença. Nós nos afligimos com o que os outros pensam sobre nós. Pois que lhes digo que Deus não dá a mínima. Ele é como uma fonte de água cristalina. Através dos séculos, os homens tem sujado essa fonte com seus malcheirosos excrementos intelectuais. Disseram que ele tem uma câmara de torturas chamada inferno onde coloca aqueles que lhe desobedecem, por toda a eternidade, e ri de felicidade contemplando o sofrimento sem remédio dos infelizes.

Disseram que ele tem prazer em ver o sofrimento dos homens, tanto assim que os homens, com medo, fazem as mais absurdas promessas de sofrimento e autoflagelação para obter o seu favor. Disseram que ele se compraz em ouvir repetições sem fim de rezas, como se ele tivesse memória fraca e a reza precisasse ser repetida constantemente para que ele não se esqueça. Em nome de Deus os que se julgavam possuidores das idéias certas fizeram morrer nas fogueiras milhares de pessoas. Mas a fonte de água cristalina ignora as indignidades que os homens lhe fizeram. Continua a jorrar água cristalina, indiferente àquilo que os homens pensam dela.

Você conhece a estória do galo que cantava para fazer nascer o sol? Pois havia um galo que julgava que o sol nascia porque ele cantava. Toda madrugada batia as asas e proclamava para todas as aves do galinheiro: “Vou cantar para fazer o sol nascer”. Ato contínuo, ele subia no poleiro, cantava e ficava esperando. Aí o sol nascia. E ele então, orgulhoso, disse: “Eu não disse?”. Aconteceu, entretanto, que num belo dia o galo dormiu demais, perdeu a hora. E quando ele acordou com as risadas das aves, o sol estava brilhando no céu. Foi então que ele aprendeu que o sol nascia de qualquer forma, quer ele cantasse, que não cantasse. A partir desse dia ele começou a dormir em paz, livre da terrível responsabilidade de fazer o sol nascer.

Pois é assim com Deus. Pelo menos é assim que Jesus o descreve. Deus faz o sol nascer sobre maus e bons, e a sua chuva descer sobre justos e injustos. Assim não fiquem aflitos com minhas idéias. Se eu canto não é para fazer nascer o sol. É porque sei que o sol vai nascer independentemente do meu canto. E nem se preocupem com suas idéias. Nossas idéias sobre Deus não fazem a mínima diferença para Ele. Fazem, sim, diferença para nós. Pessoas que tem idéias terríveis sobre Deus não conseguem dormir direito, são mais suscetíveis de ter infartos e são intolerantes. Pessoas que têm idéias mansas sobre Deus dormem melhor, o coração bate tranqüilo e são tolerantes.

Fui ver o mar. Gosto do mar quando a praia está vazia da perturbação humana, nas tardes, de manhã cedo. A areia lisa, as ondas que quebram sem parar, a espuma, o horizonte sem fim. Que grande mistério é o mar! Que cenários fantásticos estão no seu fundo, longe dos olhos! Para sempre incognoscível! Pense no mar como uma metáfora de Deus. Se tiver dificuldades leia a Cecília Meirales, Mar Absoluto. Faz tempo que, para pensar sobre Deus, eu não leio teólogos; leio os poetas. Pense em Deus como um oceano de vida e bondade que nos cerca. Romain Rolland descrevia seu sentimento religioso como um “sentimento religioso”. Mas o mar, cheio de vida, é incontrolável. Algumas pessoas têm a ilusão que é possível engarrafar Deus. Quem tem Deus engarrafado tem o poder. Como na estória de Aladim e a lâmpada mágica. Nesse Deus eu não acredito. Não tenho respeito por um Deus que se deixa engarrafar. Prefiro o mistério do mar… Algumas pessoas não gostam do que penso sobre Deus porque elas deixam de acreditar que suas garrafas religiosas contenham Deus…

Ruben Alves

terça-feira, 9 de novembro de 2010

ESTABELECER LIMITES, RESPEITAR LIMITES


A vida de relacionamentos leva a nos depararmos, freqüentemente, com a temática do limite. Muitos dos que buscam aconselhamento sofrem com o fato de, simplesmente, não saberem impor limites. Não sabem dizer não e estão sob a pressão interna de realizar todos os desejos dos outros. Acreditam que precisam corresponder a todas as expectativas e receiam dizer não, pois temem pelo abalo do seu sentimento de pertencimento ao grupo ou porque imaginam que esta atitude geraria uma rejeição. Outros comem demasiadamente porque não percebem o próprio limite. E sofrem com a sua própria incapacidade.

Em outros casos, percebemos uma incapacidade de delimitar o seu espaço diante daqueles que o rodeiam. Os limites se desfazem. Esse tipo de pessoa torna-se permeável ao que os outros sentem, sem que tal fato constitua um dado positivo. Na verdade, os seus próprios sentimentos se misturam constantemente com os dos outros. Fica exposto aos humores do ambiente que o circunda e se deixa determinar por eles. Por vezes, tem a impressão de estar se dissolvendo e vive, nesse sentido, absolutamente desprotegido. [...]

Como, então, a vida humana de uma pessoa, que afinal é sempre uma vida fundada em relacionamentos, poderia ter êxito? Sem a capacidade de delimitar o seu espaço, torna-se impossível se perceber a si mesmo enquanto pessoa, nem se desenvolver nesse sentido. Um simples olhar para o significado da palavra já sugere tal coisa: originalmente “pessoa” significa “máscara”. Através da máscara, ou seja, daquilo que penso de mim mesmo, posso estabelecer contato com o outro. A palavra latina personare significa “combinar através de”. Por intermédio da minha voz, do ato de falar, alcanço a outra pessoa, e, dessa forma, acontece o encontro, que para ter êxito exige bom equilíbrio entre limite e transgressão, proteção e abertura, demarcação do próprio espaço e entrega. Preciso conhecer o meu limite para poder transgredi-lo repetidamente no sentido de aproximar-me do outro, encontrá-lo, tocá-lo através do encontro, experimentar possivelmente um instante de me tornar uno.

Visto dessa maneira, o encontro ocorre sempre no limite. Preciso ir até o meu limite, ao ponto máximo para mim possível, para alcançar o outro. Quando o encontro tem êxito, os limites não são mais rígidos, nem separam; tornam-se fluidos. Ocorre, assim, no limite e para além do limite o evento de se tornar uno. Mas esse encontro não é estático, mas algo que sempre se realiza de forma viva e após o qual cada um retorna ao seu próprio contexto, enriquecido pela experiência no limite.

Para o escritor francês R. Rolland, a relação adequada com os limites chega a ser a chave decisiva para a felicidade. Diz ele: “Felicidade significa conhecer os seus limites ― e amá-los”. Na sua visão, não importa, portanto, apenas a arte de impor limites ou de conhecê-los. É preciso também amá-los. O que seria o mesmo que dizer que devemos concordar com as nossas limitações e ser gratos pelo limites que experimentamos em nós e nos outros. A chave da felicidade encontra-se na possibilidade de amar as próprias limitação e também amar as pessoas com os seus limites. Tal tarefa nem sempre é simples, já que desenvolvemos imagens de ausência de limites a respeito de nós mesmos. Para Rolland, no entanto, quem se reconcilia com os próprios limites e lida de forma amorosa com os mesmos terá sucesso na vida e experimentará felicidade.[...]

Anselm Grün

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Preciso de outro pecador !

Fui a uma "igreja" singular recentemente que consegue atrair milhões de membros devotos todas as semanas, sem ter sede denominacional e nem funcionários contratados. O nome é Alcoólicos Anônimos. Fui a convite de um amigo, que me confessara, pouco tempo antes, seu problema com a bebida. Ele me disse: ― Venha comigo, e verá uma amostra de como deve ter sido a igreja primitiva.

À meia–noite de uma segunda–feira, entrei em uma casa caindo aos pedaços, que já abrigara seis sessões naquele dia. Nuvens de fumaça de cigarro pairavam no ar como gás lacrimogêneo. Não passou muito tempo antes que eu percebesse o que meu amigo queria dizer com sua alusão à igreja primitiva. Um político muito conhecido e vários milionários proeminentes se misturavam com desempregados desanimados e garotos que colocavam band–aids nos braços para esconder as marcas das agulhas. O "momento de compartilhar" foi semelhante às descrições de grupos de terapia ideais que encontramos nos livros de cursos de psicologia. As pessoas ouviam em compaixão, respondiam com ardor e abraçavam–se ao final. As apresentações eram mais ou menos assim:

― Oi, sou o João, e sou dependente de álcool e drogas. Imediatamente todos gritavam em uníssono, como um coral do teatro grego: ― Oi, João! Cada participante da reunião, então, deu o relatório de seu progresso pessoal na batalha contra a dependência.

Cartazes com frases simpáticas ("Um dia de cada vez!", "Você consegue!") enfeitavam as paredes desbotadas da sala. Meu amigo acredita que esses arcaísmos revelam outra semelhança com a igreja primitiva. A maior parte da sabedoria do AA é passada de uma pessoa para a outra pela tradição oral, que vem desde a fundação da entidade, há mais de cinqüenta anos. Ninguém usa muito as publicações atualizadas do AA e nem seus artigos de relações públicas. Em vez disso, confiam principalmente em um velho livro embolorado com o título prosaico: O Grande Livro Azul dos Alcoólicos Anônimos, que conta a história dos primeiros membros, em um estilo pomposo, parecido com o da Bíblia.

O AA não possui qualquer propriedade, não tem uma sede com luxos como mala direta e centro de mídia, não há uma equipe de consultores bem pagos e nem conselheiros de investimentos a cruzar o país de avião. Os fundadores do movimento estabeleceram garantias que acabariam com qualquer iniciativa para implantar a burocracia. Acreditavam em que o programa só teria sucesso se permanecesse no nível mais básico e íntimo: um alcoólico dedicando sua vida a ajudar outro. Mesmo assim, o AA mostrou–se tão eficaz que mais 250 organizações, de Chocólatras Anônimos a grupos de pacientes de câncer, surgiram como uma imitação consciente de sua técnica.

Os muitos paralelos com a Igreja primitiva não são meras coincidências históricas. Os fundadores cristãos insistiram em que a dependência de Deus deveria ser uma parte obrigatória do programa. Na noite em que participei da reunião, todos na sala repetiram em voz alta os doze princípios, onde reconhecem total dependência de Deus para perdão e força. [...]

A igreja da meia-noite do meu amigo me ensinou a necessidade de humildade, honestidade total e dependência radical: dependência de Deus e de uma comunidade de amigos compassivos. Ao pensar nisso, pareceu-me que essas qualidades eram exatamente as que Jesus tinha em mente quando fundou sua igreja.

De acordo com o historiador Ernest Kurtz, os Alcoólicos Anônimos surgiram de uma descoberta feita por Bill Wilson em seu primeiro encontro com o Doutor Bob Smith. Por conta própria, Bill tinha conseguido manter-se sóbrio por seis meses, até que viajou para outra cidade e não conseguiu fechar um negócio. Deprimido, andando pelo saguão de um hotel, ouviu os sons conhecidos de risadas e gelo tilintando nos copos. Dirigiu-se ao bar, pensando "Preciso de um trago". De repente, veio-lhe um novo pensamento que o fez parar: "Não, não preciso de um trago; preciso de outro alcoólatra!" Foi até os telefones do saguão e começou a sequência de telefonemas que o colocaram em contato com o Dr. Smith, que viria a ser o co-fundador do Alcoólicos Anônimos.

A igreja é o lugar onde posso dizer, sem vergonha alguma: "Não preciso pecar. Preciso de outro pecador. Quem sabe, juntos, possamos nos ajudar a prestar contas um ao outro e nos manter no caminho certo"!
Adaptado de Philip Yancey