quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Sobre Deus...

Alguém disse que gosta das coisas que escrevo, mas não gosta do que penso sobre Deus. Não se aflijam. Nossos pensamentos sobre Deus não fazem a menor diferença. Nós nos afligimos com o que os outros pensam sobre nós. Pois que lhes digo que Deus não dá a mínima. Ele é como uma fonte de água cristalina. Através dos séculos, os homens tem sujado essa fonte com seus malcheirosos excrementos intelectuais. Disseram que ele tem uma câmara de torturas chamada inferno onde coloca aqueles que lhe desobedecem, por toda a eternidade, e ri de felicidade contemplando o sofrimento sem remédio dos infelizes.

Disseram que ele tem prazer em ver o sofrimento dos homens, tanto assim que os homens, com medo, fazem as mais absurdas promessas de sofrimento e autoflagelação para obter o seu favor. Disseram que ele se compraz em ouvir repetições sem fim de rezas, como se ele tivesse memória fraca e a reza precisasse ser repetida constantemente para que ele não se esqueça. Em nome de Deus os que se julgavam possuidores das idéias certas fizeram morrer nas fogueiras milhares de pessoas. Mas a fonte de água cristalina ignora as indignidades que os homens lhe fizeram. Continua a jorrar água cristalina, indiferente àquilo que os homens pensam dela.

Você conhece a estória do galo que cantava para fazer nascer o sol? Pois havia um galo que julgava que o sol nascia porque ele cantava. Toda madrugada batia as asas e proclamava para todas as aves do galinheiro: “Vou cantar para fazer o sol nascer”. Ato contínuo, ele subia no poleiro, cantava e ficava esperando. Aí o sol nascia. E ele então, orgulhoso, disse: “Eu não disse?”. Aconteceu, entretanto, que num belo dia o galo dormiu demais, perdeu a hora. E quando ele acordou com as risadas das aves, o sol estava brilhando no céu. Foi então que ele aprendeu que o sol nascia de qualquer forma, quer ele cantasse, que não cantasse. A partir desse dia ele começou a dormir em paz, livre da terrível responsabilidade de fazer o sol nascer.

Pois é assim com Deus. Pelo menos é assim que Jesus o descreve. Deus faz o sol nascer sobre maus e bons, e a sua chuva descer sobre justos e injustos. Assim não fiquem aflitos com minhas idéias. Se eu canto não é para fazer nascer o sol. É porque sei que o sol vai nascer independentemente do meu canto. E nem se preocupem com suas idéias. Nossas idéias sobre Deus não fazem a mínima diferença para Ele. Fazem, sim, diferença para nós. Pessoas que tem idéias terríveis sobre Deus não conseguem dormir direito, são mais suscetíveis de ter infartos e são intolerantes. Pessoas que têm idéias mansas sobre Deus dormem melhor, o coração bate tranqüilo e são tolerantes.

Fui ver o mar. Gosto do mar quando a praia está vazia da perturbação humana, nas tardes, de manhã cedo. A areia lisa, as ondas que quebram sem parar, a espuma, o horizonte sem fim. Que grande mistério é o mar! Que cenários fantásticos estão no seu fundo, longe dos olhos! Para sempre incognoscível! Pense no mar como uma metáfora de Deus. Se tiver dificuldades leia a Cecília Meirales, Mar Absoluto. Faz tempo que, para pensar sobre Deus, eu não leio teólogos; leio os poetas. Pense em Deus como um oceano de vida e bondade que nos cerca. Romain Rolland descrevia seu sentimento religioso como um “sentimento religioso”. Mas o mar, cheio de vida, é incontrolável. Algumas pessoas têm a ilusão que é possível engarrafar Deus. Quem tem Deus engarrafado tem o poder. Como na estória de Aladim e a lâmpada mágica. Nesse Deus eu não acredito. Não tenho respeito por um Deus que se deixa engarrafar. Prefiro o mistério do mar… Algumas pessoas não gostam do que penso sobre Deus porque elas deixam de acreditar que suas garrafas religiosas contenham Deus…

Ruben Alves

terça-feira, 9 de novembro de 2010

ESTABELECER LIMITES, RESPEITAR LIMITES


A vida de relacionamentos leva a nos depararmos, freqüentemente, com a temática do limite. Muitos dos que buscam aconselhamento sofrem com o fato de, simplesmente, não saberem impor limites. Não sabem dizer não e estão sob a pressão interna de realizar todos os desejos dos outros. Acreditam que precisam corresponder a todas as expectativas e receiam dizer não, pois temem pelo abalo do seu sentimento de pertencimento ao grupo ou porque imaginam que esta atitude geraria uma rejeição. Outros comem demasiadamente porque não percebem o próprio limite. E sofrem com a sua própria incapacidade.

Em outros casos, percebemos uma incapacidade de delimitar o seu espaço diante daqueles que o rodeiam. Os limites se desfazem. Esse tipo de pessoa torna-se permeável ao que os outros sentem, sem que tal fato constitua um dado positivo. Na verdade, os seus próprios sentimentos se misturam constantemente com os dos outros. Fica exposto aos humores do ambiente que o circunda e se deixa determinar por eles. Por vezes, tem a impressão de estar se dissolvendo e vive, nesse sentido, absolutamente desprotegido. [...]

Como, então, a vida humana de uma pessoa, que afinal é sempre uma vida fundada em relacionamentos, poderia ter êxito? Sem a capacidade de delimitar o seu espaço, torna-se impossível se perceber a si mesmo enquanto pessoa, nem se desenvolver nesse sentido. Um simples olhar para o significado da palavra já sugere tal coisa: originalmente “pessoa” significa “máscara”. Através da máscara, ou seja, daquilo que penso de mim mesmo, posso estabelecer contato com o outro. A palavra latina personare significa “combinar através de”. Por intermédio da minha voz, do ato de falar, alcanço a outra pessoa, e, dessa forma, acontece o encontro, que para ter êxito exige bom equilíbrio entre limite e transgressão, proteção e abertura, demarcação do próprio espaço e entrega. Preciso conhecer o meu limite para poder transgredi-lo repetidamente no sentido de aproximar-me do outro, encontrá-lo, tocá-lo através do encontro, experimentar possivelmente um instante de me tornar uno.

Visto dessa maneira, o encontro ocorre sempre no limite. Preciso ir até o meu limite, ao ponto máximo para mim possível, para alcançar o outro. Quando o encontro tem êxito, os limites não são mais rígidos, nem separam; tornam-se fluidos. Ocorre, assim, no limite e para além do limite o evento de se tornar uno. Mas esse encontro não é estático, mas algo que sempre se realiza de forma viva e após o qual cada um retorna ao seu próprio contexto, enriquecido pela experiência no limite.

Para o escritor francês R. Rolland, a relação adequada com os limites chega a ser a chave decisiva para a felicidade. Diz ele: “Felicidade significa conhecer os seus limites ― e amá-los”. Na sua visão, não importa, portanto, apenas a arte de impor limites ou de conhecê-los. É preciso também amá-los. O que seria o mesmo que dizer que devemos concordar com as nossas limitações e ser gratos pelo limites que experimentamos em nós e nos outros. A chave da felicidade encontra-se na possibilidade de amar as próprias limitação e também amar as pessoas com os seus limites. Tal tarefa nem sempre é simples, já que desenvolvemos imagens de ausência de limites a respeito de nós mesmos. Para Rolland, no entanto, quem se reconcilia com os próprios limites e lida de forma amorosa com os mesmos terá sucesso na vida e experimentará felicidade.[...]

Anselm Grün

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Preciso de outro pecador !

Fui a uma "igreja" singular recentemente que consegue atrair milhões de membros devotos todas as semanas, sem ter sede denominacional e nem funcionários contratados. O nome é Alcoólicos Anônimos. Fui a convite de um amigo, que me confessara, pouco tempo antes, seu problema com a bebida. Ele me disse: ― Venha comigo, e verá uma amostra de como deve ter sido a igreja primitiva.

À meia–noite de uma segunda–feira, entrei em uma casa caindo aos pedaços, que já abrigara seis sessões naquele dia. Nuvens de fumaça de cigarro pairavam no ar como gás lacrimogêneo. Não passou muito tempo antes que eu percebesse o que meu amigo queria dizer com sua alusão à igreja primitiva. Um político muito conhecido e vários milionários proeminentes se misturavam com desempregados desanimados e garotos que colocavam band–aids nos braços para esconder as marcas das agulhas. O "momento de compartilhar" foi semelhante às descrições de grupos de terapia ideais que encontramos nos livros de cursos de psicologia. As pessoas ouviam em compaixão, respondiam com ardor e abraçavam–se ao final. As apresentações eram mais ou menos assim:

― Oi, sou o João, e sou dependente de álcool e drogas. Imediatamente todos gritavam em uníssono, como um coral do teatro grego: ― Oi, João! Cada participante da reunião, então, deu o relatório de seu progresso pessoal na batalha contra a dependência.

Cartazes com frases simpáticas ("Um dia de cada vez!", "Você consegue!") enfeitavam as paredes desbotadas da sala. Meu amigo acredita que esses arcaísmos revelam outra semelhança com a igreja primitiva. A maior parte da sabedoria do AA é passada de uma pessoa para a outra pela tradição oral, que vem desde a fundação da entidade, há mais de cinqüenta anos. Ninguém usa muito as publicações atualizadas do AA e nem seus artigos de relações públicas. Em vez disso, confiam principalmente em um velho livro embolorado com o título prosaico: O Grande Livro Azul dos Alcoólicos Anônimos, que conta a história dos primeiros membros, em um estilo pomposo, parecido com o da Bíblia.

O AA não possui qualquer propriedade, não tem uma sede com luxos como mala direta e centro de mídia, não há uma equipe de consultores bem pagos e nem conselheiros de investimentos a cruzar o país de avião. Os fundadores do movimento estabeleceram garantias que acabariam com qualquer iniciativa para implantar a burocracia. Acreditavam em que o programa só teria sucesso se permanecesse no nível mais básico e íntimo: um alcoólico dedicando sua vida a ajudar outro. Mesmo assim, o AA mostrou–se tão eficaz que mais 250 organizações, de Chocólatras Anônimos a grupos de pacientes de câncer, surgiram como uma imitação consciente de sua técnica.

Os muitos paralelos com a Igreja primitiva não são meras coincidências históricas. Os fundadores cristãos insistiram em que a dependência de Deus deveria ser uma parte obrigatória do programa. Na noite em que participei da reunião, todos na sala repetiram em voz alta os doze princípios, onde reconhecem total dependência de Deus para perdão e força. [...]

A igreja da meia-noite do meu amigo me ensinou a necessidade de humildade, honestidade total e dependência radical: dependência de Deus e de uma comunidade de amigos compassivos. Ao pensar nisso, pareceu-me que essas qualidades eram exatamente as que Jesus tinha em mente quando fundou sua igreja.

De acordo com o historiador Ernest Kurtz, os Alcoólicos Anônimos surgiram de uma descoberta feita por Bill Wilson em seu primeiro encontro com o Doutor Bob Smith. Por conta própria, Bill tinha conseguido manter-se sóbrio por seis meses, até que viajou para outra cidade e não conseguiu fechar um negócio. Deprimido, andando pelo saguão de um hotel, ouviu os sons conhecidos de risadas e gelo tilintando nos copos. Dirigiu-se ao bar, pensando "Preciso de um trago". De repente, veio-lhe um novo pensamento que o fez parar: "Não, não preciso de um trago; preciso de outro alcoólatra!" Foi até os telefones do saguão e começou a sequência de telefonemas que o colocaram em contato com o Dr. Smith, que viria a ser o co-fundador do Alcoólicos Anônimos.

A igreja é o lugar onde posso dizer, sem vergonha alguma: "Não preciso pecar. Preciso de outro pecador. Quem sabe, juntos, possamos nos ajudar a prestar contas um ao outro e nos manter no caminho certo"!
Adaptado de Philip Yancey